O sal se tornou insípido.
Assisti atônito ao Jornal Nacional e vi o William Bonner e a Patrícia Poeta, com a alegria que lhes é peculiar no horário nobre, anunciarem o encontro gospel denominado Festival Promessas, que se realizará, hoje, no Aterro do Flamento, Rio, realizado pela TV Globo com o apoio da Prefeitura do Rio de Janeiro (http://g1.globo.com/jornal-nacional/).
Isso não ficou por aí, mais tarde, no Jornal da Globo, o Willian Waack e Christiane Pelajo deram a mesma ênfase na notícia.
Os meus neurônios se aquietaram e fui dormir pensando nisso.
Hoje, pela manhã, pesquisei, no site da Globo (http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/12/festival-de-musica-gospel-tera-oito-horas-de-shows-neste-sabado-no-rio.html) e constatei o que já imaginava, a divulgação está perfeita. Entre no site e acompanhe os tópicos da matéria: fala do trânsito; apresenta mapas; dá dicas de como chegar ao local (acesso via aeroporto, metrô, estacionamento); e destaca as recomendações importantes.
Aprendi, com o ditado popular que: “quando a esmola é demais o cego desconfia”.
Se você tiver a curiosidade de assistir o vídeo do Jornal da Globo (final da noite de ontem), verá quando o jornalista mostra os evangélicos que chegaram 24 horas antes para pegar os melhores lugares e verem de perto os seus ídolos (isso mesmo, a palavra utilizada é “ÍDOLOS”).
Por que estou pasmo com isso?
Por que sinto cheiro de algo estranho no ar?
Para muitos, meu pensamento pode não fazer sentido. O arraial da igreja está em festa; a juventude gospel empolgadíssima. Afinal, conseguimos o espaço na mídia, que merecíamos há muito para divulgar o Evangelho. Ouviremos palavras de ordem: “é bênção pura”; “somos cabeça e não cauda”; “botamos o diabo em baixo de nossos pés”, e outras mais.
Pergunta: que evangelho vai ser divulgado no show?
O máximo que a sociedade vai perceber (pelo noticiário da TV) é que hoje os evangélicos são uma multidão e uma grande força política (isso não é novidade, todos já sabem).
Todavia, os mais inteligentes e críticos podem ir além e dizer que a Globo está se aproveitando do cisma evangélico promovido pelo Edir Macedo e sua Rede Record – no episódio da reportagem do “cai-cai”, levada ao ar no programa Domingo Espetacular há aproximadamente três semanas – para se aliar à parte ofendida da igreja (todos os outros crentes que não pertencem à Igreja Universal) e dar uma demonstração de força vinda da audiência evangélica, uma vez que a briga da Globo com a Record dividiu os crentes: do lado da Record ficou a Universal; e do lado do Globo, as demais denominações. Lembre-se que isso é um jogo empresarial.
E agora, de que lado você está?
Por favor, saia do quadrado e raciocine sobre o que está acontecendo na igreja evangélica brasileira, já há algumas décadas:
1) Até meados da década de 70, os crentes eram perseguidos e “mal vistos” pela sociedade de maioria católica.
Lembro-me, na minha infância e juventude, que era possível conhecer um crente de longe, pelo seu santo radicalismo. Eu, que não vim de família evangélica, “morria de medo” de me aproximar deles, pois, num pensamento imaturo, corria risco. Para mim, aquilo era semelhante a chegar perto de um leproso. Quem viveu naquela época, fora da igreja evangélica, sabe do que eu estou falando. Havia uma diferença perceptível na presença de uma família cristã. Na verdade, ninguém queria se aproximar deles, com medo de se tornar um radical nas práticas, atitudes e vestimentas, além de carregar aquele velho e pesado livro de capa preta.
Pois bem, o tempo passou e as coisas mudaram ...
2) No final da década de 70, surgiram as primeiras igrejas neopentecostais. A partir daí as coisas tomaram outro rumo. A Igreja foi para a mídia e as figuras carismáticas ocuparam o espaço da TV nas manhãs de domingo. Era o início dos tele-ministérios. A Igreja começou a ficar famosa; e apareceu um “fogo estranho” no meio evangélico: o culto às personalidades. Os líderes ganharam poder político e a humildade sucumbiu à vaidade.
O paradigma mudou. A figura do grande líder ocupou espaço e o Senhor da Igreja, ainda mencionado nos cultos, passou a ser um mero coadjuvante e assessor de causas impossíveis.
Com esse novo paradigma instalado e consolidado, os líderes nanicos passaram a invejar os grandes ministérios e, em lugar de se manterem exclusivamente fiéis ao Senhor da Igreja, começaram a imitar as práticas estranhas: dinheiro, vaidade e poder. O combustível da Igreja passou a ser o vil metal.
Líderes se levantaram contra líderes. A luta deixou de ser “contra o sangue e a carne, contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes”. A luta passou para o âmbito interno da igreja (como diria Jesus, “casa dividida”); contra feudos e guetos denominacionais; contra todos aqueles que pudessem ameaçar o meu espaço ministerial. A Glória de Deus passou a ser disputada palmo a palmo pelos homens.
3) Com o poder na mão de grandes líderes, o cenário estava armado para o próximo passo: a conquista do poder político. O alvo, agora, eram as cadeiras legislativas (Câmara, Senado Federal e assembléias legislativas). A desculpa era: “vamos mudar a sociedade pela lei”. Bela desculpa. Quando os pastores deixaram seus púlpitos e desembarcaram nos cargos políticos, ao invés de salgarem o ambiente totalmente corrompido, se acostumaram a ele. A igreja passa a ter novas bandeiras: saúde, educação, segurança, ecologia, distribuição de renda, qualidade de vida, etc.
Por serem subordinados a partidos, os pastores políticos foram obrigados a defender ideais partidários: a descriminalização do aborto e a luta contra a homofobia.
Pois bem, chegamos os nossos dias com essa realidade. Agora sim, a igreja evangélica chegou ao nível de licenciosidade que a sociedade aceita. Nesse momento, não oferece mais ameaça. Até a Rede Globo quer ser parceira dela. Onde já se viu isso?
Para finalizar tal reflexão, segue uma pergunta feita há quase dois mil anos pelo próprio Senhor da Igreja:
“[...] ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens” - Mt 5:13.
Que saudade faz o “santo radicalismo”.
TEXTO Luciano Abreu.
Buscar artigos
Há um ano
Nenhum comentário:
Postar um comentário